Olhar Profundo
O sol pairava por entre as nuvens e pendia sobre as copas das árvores naquela agradável manhã de sexta-feira. Rio das Flores, uma bela cidade hospitaleira no interior do Rio de Janeiro, sempre atraía os turistas que estavam em busca de descanso e sossego.
Dentre os milhares habitantes da pacata cidadezinha, diariamente, Charlotte, uma jovem camponesa de rosto arredondado e com uma pele bronzeada, levantava um pouco antes do sol nascer. Ela cuidava da pequena horta de verduras, colhia algumas couves e alfaces e os colocava em uma caixa de plástico média vermelha. Acordava Anthony, seu irmão caçula de 7 anos, e o ajudava a se preparar para mais um dia de aula.
Após deixar o pai, que se recuperava de um princípio infarto, aos cuidados da vizinha, Charlotte tomou o café da manhã e saiu de casa apressada enquanto carregava a caixa nos braços esguios. Acompanhou os passos lentos do irmão e o seguiu pela descida na estrada de terra enquanto o sol nascia.
Depois de andarem por quase meia hora, pararam no portão azul de uma escola municipal da cidade. Charlotte deu um beijo na testa do pequeno Anthony e seguiu às pressas para o trabalho.
Embora fosse pontual, os últimos dias pareciam mais complicados, era o terceiro dia que ela chegava atrasada no trabalho. A jovem camponesa jogou os cabelos tão escuros quanto o petróleo para trás dos ombros, atravessou as portas do estabelecimento sob os olhos pequenos e estreitos de sua patroa.
― Qual é a desculpa dessa vez? ― Mary arqueou uma das sobrancelhas finas e ralas.
O comércio "Do Campo-Hortifruti" era administrado por Mary, uma mulher atarracada com uma expressão carrancuda, que evoluiu financeiramente por entre as paredes foscas e opacas do comércio de produtos hortifrutigranjeiros.
― Meu pai precisa de cuidados e eu não posso deixá-lo sozinho. ― Charlotte prendeu as longas madeixas com um elástico rosa. ― Eu esperei a minha vizinha chegar para cuidar do meu pai e depois eu levei…
― Chega! ― Mary interrompeu com uma seriedade hostil. ― O que eu tenho a ver com isso? ― prosseguiu o tom alterado. ― Se você não tem compromisso com o trabalho, então peça demissão. ― Cuspiu as palavras.
Fazia tempo que Mary queria demiti-la, mas o esposo não deixava. Fez uma pausa e fitou Charlotte.
― Eu trouxe as verduras que a senhora pediu
― Vai trabalhar antes que eu me arrependa e te mande embora! ― A jovem senhora de pele caramelo gabou-se.
Charlotte movimentou os lábios, entretanto, engoliu as palavras, precisava do emprego para terminar de pagar as prestações da casa e ajudar no sustento da família. Colocou o avental e organizou as folhas de couve e algumas alfaces sobre uma bancada branca
― Charlotte, hoje você vai fazer algumas entregas, o carro do meu esposo está na oficina.
― Eu não tenho carro, dona Mary!
― Use a bicicleta.
Mary gostava de provocar a funcionária.
― Algum problema?
― Não, senhora!
A luz branda iluminou o olhar profundo que fulminou a patroa assim que Mary deu-lhe as costas. Charlotte conteve a vontade de falar tudo o que vinha à garganta. Resignada, ela começou a preparar os produtos listados nos pedidos de entrega.
O dia na belíssima cidade, com diversas cachoeiras, trilhas e mirantes, parecia não ter fim. Apesar de morar em um lugar com várias fazendas e construções históricas, Charlotte não tinha tempo para apreciar a cidade onde nasceu.
Era muito jovem quando sua mãe foi à mercearia, um dia após o natal de 1987, e não retornou. Nos primeiros anos, ela ainda tinha esperança de reencontrá-la, todavia, uma das vizinhas contou-lhe toda a verdade sobre o misterioso sumiço. Foi doloroso descobrir que a mãe fugiu com um turista pelo qual se apaixonou.
Charlotte ajeitou o vestido de malha estampado com pequenos girassóis na altura do joelho enquanto pedalava o mais rápido que podia. Os fios da franja lateral emolduravam o rosto viçoso assim que ela encostou a bicicleta na beira da calçada em frente ao hortifruti.
― Onde você vai? ― Mary lançou um olhar exasperado
― Eu vou para casa! Terminei o meu trabalho.
― Não! Você vai fazer a última entrega, a governanta da fazenda Paradise fez um pedido e eu preciso que você leve quanto antes.
― Posso entregar amanhã?
― Não ― respondeu o tom gutural
Mary pegou a cesta com verduras e legumes frescos e a entregou
― Essa encomenda é para o jantar especial na casa da família Alcântara, parece que a fazenda está comemorando o retorno do Peter.
― Sério? Que bom para eles ― retrucou com um tom irônico. Prendeu a cesta na garupa da bicicleta azul e olhou para a patroa. ― Dona Mary, posso ir para casa depois dessa entrega?
― Pode! Vai rápido porque a cozinheira precisa dessas verduras e legumes.
Sem demora, ela pedalou pelo asfalto e seguiu pelo trecho íngreme. Os olhos, cor de âmbar, cintilavam com a vista do riacho e os açudes cercados pelo relevo. A estrada estreita por entre os pomares cítricos mostrava o caminho para a luxuosa fazenda.
Charlotte desceu da bicicleta com cuidado e atravessou os enormes portões de madeira maciça. Franziu o cenho assim que passou pelo capataz que conversava com dois funcionários da fazenda e a olhava de um jeito estranho.
― Hei, coisa linda! ― O homem barbudo levantou o chapéu de palha e passou a língua nos dentes enquanto os dois amigos riam. ― Vem cá!
Ela evitou olhar para o trio que a chamava entre risos e agilizou os passos. Uma alameda de palmeiras-imperiais balançavam a favor do vento e davam as boas-vindas enquanto caminhava por uma trilha de ardósia cinza até a suntuosa casa dotada de importância arquitetônica.
Ali, no belíssimo jardim, havia algumas rosas-brancas e tulipas que cresciam fortes e imponentes. Charlotte encantou-se com as hortênsias no canteiro, não percebeu a silhueta do homem que se aproximava pelo gramado inclinado.
As longas madeixas desceram como cascatas sobre os ombros, a presilha escorregou pelos fios preto-azulados e caiu no meio da grama bem aparada. Tentou se equilibrar ao abaixar e pegar o prendedor de cabelo, mas todo o seu esforço foi inútil, as verduras e os legumes se espalharam pelo chão. Charlotte caiu próxima aos pés dele como uma águia que avança do céu.
― Quer ajuda, gata? ― Os braços torneados por músculos se esticaram na direção dela.
O homem com um queixo marcado e uma mandíbula forte tirou os óculos escuros. Os olhos negros avaliaram o rosto de Charllote.
― Não ― respondeu ela com uma expressão aborrecida, já estava cansada dos galanteios dos funcionários daquela fazenda. ― Tenho duas mãos! ― Charlotte levantou-se do chão e se endireitou após limpar o vestido.
Ele se aprumou em seus 1,77 cm de altura e afastou-se ao vê-la sacudir a cabeça em sinal negativo. As mãos compridas recolheram algumas verduras e legumes.
― Você é atrapalhada!
― Estava me espiando? ― O sangue correu pelo rosto de Charlotte ao encará-lo. ― Isso não foi gentil!
Ela desviou o olhar e ajeitou as mercadorias na cesta. Em seus pensamentos, Charlotte torcia para que ele não contasse à cozinheira sobre o pequeno acidente com a encomenda
― Além de atrapalhada, você também é m*l-educada!
― Sou grossa mesmo! Se você quer doçura, então se afogue no leite condensado!
― Talvez eu recuse a entrega. ― Projetou o queixo ao mirar nela. ― Algumas verduras estão sujas de terra.
O homem com dentes brilhantes e bem alinhados esboçou um sorriso torto. Fez uma pequena pausa e ergueu uma das sobrancelhas. As mãos firmes a puxaram pelo braço. Antes que ela o respondesse, segurou-a pela curva da cintura e a apertou contra o corpo dele.
― Me solta! ― Charlotte o empurrou com as duas mãos ao protestar. ― Se me agarrar de novo, eu vou gritar. ― Recuou em passos hesitantes.
― Peter! O que está fazendo? ― Uma mulher grandalhona o chamou da entrada principal. ― Peça a garota para vir até aqui! Preciso preparar o jantar.
Ele concordou com a cabeça ao passar os dedos nos fios curtos, massageou a nuca e olhou da senhora que o aguardava para a Charlotte.
― Para a sua sorte, não me importo com a droga desse jantar ― fez uma pausa por alguns segundos, a voz firme e grave continuou.― Não queria estar aqui.
― Isso é problema seu! ― Deu uma risada de escárnio. ― Vai ficar com a encomenda ou levo de volta?
― Me dá isso aqui, garota! ― Tomou a cesta da mão de Charlotte.
― e******o!
― Muito obrigado, Miss simpatia! ― disse em tom sarcástico. Ele pegou a carteira de couro marrom e pagou o valor dos produtos! ― Fique com o troco!
Peter virou as costas e tomou distância de Charlotte. A mão alva puxou a parte debaixo da camisa de linho azul-escuro que acompanhou a movimentação dos músculos. Os sapatos de couro sintético preto batiam contra o paralelepípedo até a entrada principal do casarão com uma pintura branca.
A jovem camponesa puxou o vestido na altura dos joelhos antes de montar na bicicleta e seguiu pelo caminho estreito da ardósia. Em poucos minutos, as pedaladas apressadas a levaram para longe dos limites da fazenda Paradise.
No dia seguinte, Anthony não parava de pular no trajeto até a cachoeira. Havia alguns meses que a irmã não o levava para um dia tão divertido. Eles seguiram as placas que sinalizavam o caminho até encontrar um lugar calmo e sem aglomerações.
― Anthony, vamos ficar por aqui!
Charlotte colocou a cesta com alguns lanches ao lado da cadeira reclinável.
― Posso pegar peixinhos?
― Pode! Só não vá para longe.
Ela colocou os pés nas águas frias e cristalinas enquanto o irmão caçula ia de um lado para outro na parte rasa. Às vezes, as pequenas mãos de Anthony seguravam alguns peixes pequenos, mas escapava e caía de novo nas águas doces.
Por todos os lados ouviam-se os cantos melodiosos dos pássaros se unirem aos ruídos da queda d'água, sentia como se estivesse perdida em um mundo totalmente seu, cheio de paz. O momento de tranquilidade foi tomado pela sensação de ser vigiada. Charlotte ouviu um barulho que lhe chamou a atenção, lançou o olhar pela copa frondosa do eucalipto e procurou o que causava aquele ruído.
― Me ajude!
O corpo do menino sumiu por entre as águas, o braço de Anthony subia e lutava contra a correnteza que o arrastava.
― Socorro! ― Gritou
Charlotte estava a ponto de se jogar na água, mas foi ultrapassada pelo homem que pulou do alto da árvore e mergulhou. Os braços rápidos e fortes alcançaram o menino em menos de três minutos. Não demorou muito até que Peter alcançasse as pedras e trouxesse a criança.
― Anthony! ― Ela levou as mãos esguias aos lábios ao ver o irmão desacordado. ― Acorde!
― Se afasta, preciso de espaço!
Peter colocou a criança sobre a pedra, verificou o pulso de Anthony e começou os procedimentos e as técnicas para os primeiros socorros.
― Respira, garoto!